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contentamento – um trecho

Café da manhã, um tempo na banheira, recortes de revistas. Ana me ligou um pouco antes das onze de um sábado. Depois sumiu. Não atendeu o celular, não respondeu minhas mensagens… Passei o dia todo trancado no quarto. Na penumbra do apartamento escuro, o começo da noite quebrado pela luz do abajur de papel vegetal com nossas fotografias impressas – nosso sexto mês. Um presente infantil e doce – concluímos logo depois. Dentes brancos no papel e borrões coloridos na parede. Quase dez horas ela interfonou. Não quis entrar, pediu que eu descesse. Quando insistiu de manhã eu hesitei, mas não tinha nada a perder além de um ou dois filmes, um saxofone choroso, a meia luz do abajur, uma noite de sábado. Saímos. O jeans claro da calça que eu gostava tanto, uma camiseta justa sustentando os seios muito duros, e as Havaianas que pareciam nunca envelhecer.

 

Quando as luzes partem

Começou quando cobriu quase o país inteiro em luto após matar a mãe em uma jogada inesperada. Um apagão sobre as cidades dominadas por hordas de sombras. As ruas banhadas pelo neon das estrelas, que além de brilhar mais forte, cobriam com o fogo anunciado os morros da cidade.

Num descampado, no desertoFoto-A0354 banhado pelo vento e os barulhos da noite, se estivesse de olhos fechados, poderia sentir o estremecer da terra em exclamações quando o mundo, em sequência, começou a apagar. Mas, de dentro da sala escura, feito quem se prepara para o luto, o som seco da lâmpada de projeção já queimada anunciando o fim, suposto presságio do melodrama vindouro.

Daqui de cima, o abismo superior. Todas as ilhas esquecidas e entregues às sombras de uma noite completa. A exaltação periférica dos que olham para o horizonte e, no além mar, com mais clareza se distingue o infinito do abismo. A rodovia flutuante. As pontes não esquecem os que transitam. As pontes não existem quando o mundo apaga. Daqui de cima, nos morros da cidade, tudo brilha mais devagar.

No trânsito desarticulado o clima noir deposto pela chuva torrencial que varre a cidade e despista a desesperança num final convencional. A mesma chuva. Música para os créditos finais.

Passagem

3a ponte Olho para trás. Olhos fechados, a boca aberta. Quando olho, parece que tudo flutua. O entardecer começa com um céu acobreado, de dentro da segunda-feira, o ônibus cheio – quando não nos permitem o direito de respirar e o que passa pela janela fica para trás em uma fila, que regressa ao ponto inicial como se fosse parar – e para muitas vezes. Descansa quem caminhou e tem as pernas adormecidas.

Atrás, onde ficaram as horas do dia que, um pouco mais claro, deixava ver menos do que se pode ver no adiantado do. É tarde, a segunda envelhece. Todos são velhos no ônibus. Olho para trás e a fila continua estática, uma fila sem fim que não nos atravessa, não atravessa também todas as falas entrecortadas e ruídos que não pertencem a um lugar próprio. Buzinas que também não permitem respirar.

Fico lá atrás. Os olhos fechados e a boca aberta, sussurrando sem compasso. O dia algo para o fim, que ritmado, inclina pouco a pouco, perto, a conclusão. O peso sobre o corpo confuso com as luzes que flutuam nas listras do lençol faz da tonteira algo mais desconcertante que o próprio estar no interior do ônibus. Os sons do esforço contínuo, da vontade que a falta de força aplaca. A necessidade da conclusão que não chega.  A cara riscada pelo sono profundo que permite o céu. Mas estaciona.

Daqui de cima o mar provoca perdição. Turvo e nebuloso. Não as constelações que brincam de brilhar quando o sol está forte. A queda é dura com o mar assim. Oceano que foge das descrições convencionais: um mar sem paz, de água doce. Só a existência de vidas ainda desconhecidas, lá embaixo, no mergulho para quem não pode ver.

Os faróis acesos anunciando que além do mar e do céu, nas profundezas impossíveis de enxergar de cima, ainda vive algo que não se pode conhecer. Que na queda dura do térreo ficam para trás sugestões, e o dia continua para o desconhecido, em compasso, mesmo que ainda indeterminado.

19 como número da sorte

Ah! Começa descrevendo o apartamento. O chão, de que material é o chão? Esse, o dos quartos, ou o da sala, dos outros cômodos? O da sala, o da sala é liso e branco, esse. Passando pelo corredor hoje, antes de anoitecer, vi a quantidade de cabelos, outros pelos espalhados pelo chão. Tem que ser o da sala. Descrevemos o apartamento inteiro? Não melhor não, só o piso, o piso e a vista, que é de estarrecer, essa vista de bronze no final da tardinha, lá atrás, quando o mundo começa no Moxuara. Então tá. Fica a imagem do chão sujo, manchado e com pelos, além da paisagem, única coisa de boa no apartamento. Mas é janeiro. Falamos do calor também? Não, calor não, nesse caso calor é anticlimático. Vai, continua…

Foi olhar para cima após uma cerveja e pensar no quanto o sol queimaria de manhã que apaguei, quase às 4h. Poderia ir à praia no outro dia, hoje, dia de sol brilhante e preguiça extasiante.

Em casa, na internet: Crônica de @jpcuenca muito boa.



É quando tenho mais sono. Quando o cansaço é tão grande que sufoca como o peso no peito pós-quatro bolinhas tomadas em uma noite que não queria saber quem era, que estava fazendo, se falava com pessoas  que  não gostam de mim, que sinto esse frio que ouço tanto falar. Esse vento que não parece que bate, mas que desce aos poucos, trava pouco a pouco língua e estômago, transforma o órgão que sempre tive mais medo de machucar num labirinto congelado sem iscas de pão, muito escuro.

meninas

Roberta não aprende. Todo domingo as duas estão sempre iguais: o cheiro dos cabelos, os mesmos pedidos, a mesma descosideração.

Antigamente recebia os finais de semana como um vento renovador. A visita das meninas arejava aquela casa com gargalhadas gostosas e inconveniências. Abraços e beijos, declarações de amor. Roupinhas limpas e passadas…

Roberta sabe que não posso aos domingos, que não gosto do cheiro do creme para pentear, que é constrangedor ter as meninas por perto quando tenho que estar com outro alguém.

Aos domingos Marcos aparecia e forçado à convivência teve que se afetuar aos poucos, sem cobranças. Familiar, a afeição ecoou pela casa.

Tio Marcos, me compra o salão de beleza da Susi?

velotrol

O corpo range como algema presa. Seco, pendura no cabide as blusas molhadas após quarar: quatro horas e o sol não se foi, as manchas persistem, são provas de que tudo permanecerá. Tudo está intocado: hematomas, nódoa de bananeira.

Cobre a fina superfície do travesseiro com a fronha multicolorida. O dia brilha, o filme volta num plim-plim irrempreensível. O dia é lindo e banhado ao som de cachoeira – disseram que não havia nada para observar além do som da cachoeira.

Quando era criança, lembrou anos mais tarde, o grande sonho era ter um velotrol. Descer as ladeiras embalado, violentar os joelhos violentados, arrancar a casca dos ralados quase cicatrizados. Hoje sabe que o corpo dói como algema enferrujada quando lembra do pai contar:

faz-se um furo cilíndrico no caule da bananeira e enfia-se o pinto, enrigecido, entumecido e jovem, aniquilado. as manchas de nódoa na roupa podem dununciar, sendo assim, fique nu em pelo.

Com o tempo toda a brincadeira faz sentido. Tornou a desejar o velotrol com todas as forças, mas não havia mais explicação. Eram tempos de pipas e bicicletas. Mais uns meses e nada mais. A gente sente dor aos oito anos, mesmo que digam o contrário. E a infância passa.

escadas

A alça da mala arrastava pelo chão empoeirado. As paradas do ônibus e o ar condicionado, complemento perfeito para empestear a alma com o cheiro dos cigarros. Não via nada ao seu redor, mesmo com os acordes rasgados culminando, destruindo seu aparelho auditivo, mesmo com toda a pressa anti-moderna da rodoviária: mães e tias, bermudas florais e regatas, estudantes esperando para embarcar e enterrar as falsas responsabilidades pelos próximos dias; nada disso afligia, mesmo as figuras estranhas, nem a desconfiança. Seguia em linha reta, sem reagir aos empurrões a ao volume de pessoas que assim como ele, remavam contra a maré, sempre, contra a maré…

Visto! Revisto, analiticamente, detalhisticamente todos os acertos. Bah! Ele não diz nada a respeito, finge que fugiu de mim. Aquilo de mentir, gente que só disfarça, esse povo que faz charme, fica de agradar, às vezes agrada, mas não convence. E cara, ele acha que me ganha quando exalta, glorifica minha saia, fantasia minhas noites.

Ai amor bandido! O cara é um mentiroso, um corrompido. Só se eu fizesse o tipo, quero a cena Balzaq político. Pena ele não ser católico! No fim das contas fica sempre por isso, nas noites de sexta eu assistia ao High School, tentava lembrar que o tempo passou.